E ainda a água em Cuiabá

NEILA BARRETO

ARQUIVO PESSOAL

Como já vimos o problema da conquista da água em Cuiabá é histórica. População, governantes e administradores do assunto só lembram que o caso é sério quando inicia a falta das chuvas, o período das secas e das enchentes e, a consequente falta de água. Manobras políticas sempre existiram em torno do assunto. Ninguém quer resolver. É um eterno jogo de empurra e empurra. Entra governante sai governante o problema continua. Solução tem, basta tratar o assunto como prioridade e com seriedade, afinal o ato de abrir e fechar uma torneira é um ato de poder.

Em Cuiabá, em 1876, autor de projeto de ferrovia ligando a cidade de Cuiabá à Lagoinha, Francisco José Gomes Calaça comentava a distribuição de água potável na capital da província assim: A falta de água no interior da cidade de Cuiabá é notável, apesar de se achar na margem de um rio, de tal maneira que já houve quem se propusesse a ir buscar as águas do rio Mutuca para abastece-la; projeto ao meu ver insensato, não só pela grande distância que se terá de vencer para evitar as ondulações do terreno, como também pela grande extensão de encanamentos ou aquedutos que será necessário construir-se na maior parte do terreno que é arenoso. Mil vezes preferível seria, por meio de uma Máquina Elevatória, levar as águas do rio, um pouco acima da cidade, estabelecendo-se em um ponto suficientemente elevado a caixa de distribuição para toda ela. E foi isso que aconteceu em 1882, quando a água foi aduzida do rio Cuiabá até hoje onde é o Morro da Caixa d´Água Velha, na capital. Abasteceu por um bom tempo a cidade, até 1940 mais ou menos.

Em função da precariedade da água doce potável para o abastecimento da cidade em 1877, o presidente da província – Antônio José Murtinho proibiu que roupas da Santa Casa de Misericórdia e da Enfermaria Militar fossem lavadas no tanque do Baú, determinando que passassem a ser lavadas no rio Cuiabá. A intenção do presidente era preservar a água do tanque para servir a população de água potável, pois naquela época não havia produtos químicos para tratamento e nem os canos de água espalhados pela cidade de Cuiabá. Na verdade, uma espécie de “economize Água, senão vai faltar para beber”.

Em 1878, novo diagnóstico realizado pelo então presidente da província frisava a questão do abastecimento público de água potável à cidade de Cuiabá, conforme relatório de João José Pedrosa enviado à Assembléia Legislativa Provincial, em Cuiabá, 01-11-1878: A maior, porém, de todas as necessidades da população desta capital é a do abastecimento d’água potável. (…) dois chafarizes (…) dentro em pouco tempo inutilizaram-se pela escassez dos mananciais que os alimentavam(…). Infelizmente para a população desta cidade, o problema continua à espera de solução (…). O engenheiro Amarílio Olinda de Vasconcelos (…) encarregado de estudar a matéria (…). Reconheceu que as vertentes existentes dentro da cidade eram insuficientes para o suprimento da água precisa para a população, calculando que tal suprimento demandava 1 024 000 litros por dia. Seu cálculo tomou por base a população de 16 000 almas, fazendo dedução dos moradores estabelecidos nas margens dos rios próximos da cidade. (…) lembrei-me de mandar vir da corte algumas máquinas artesianas para, com o auxílio delas, minorar o mal. Veremos se dão essas máquinas algum resultado profícuo, facilitando, ao menos, o aproveitamento dos poucos mananciais existentes dentro da cidade.

Percebe-se pela descrição acima que a cidade adensa, lugares de fontes nativas são soterradas para receber novas moradias. Lugares de matas que sustentavam as nascentes são atingidas, desmatadas, assoreadas, com isso a quantidade de água vai tornando deficientes para abastecer os poucos chafarizes existentes em Cuiabá. Outro problema sério é a falta de energia que dificultava os trabalhos da busca da água em Cuiabá em lugares mais longínquos. Hoje, temos energia, porém, a cada dia que se passa aduzir a água para a cidade está cada vez mais caro, em função de custos com energia e produtos químicos, além da proliferação de casas, bairros, condomínios, utilizando a mesma estrutura das décadas de 70, como é o caso das duas ETAs antigas.

Provavelmente as “máquinas artesianas” referidas pelo presidente sejam as máquinas perfuratrizes adequadas para as perfurações de poços com o objetivo de ajudar no abastecimento de água da cidade. Além disso, em 1879, determinou a feitura de exame das vertentes de água e dos encanamentos dos chafarizes do Rosário e da Conceição. Os encanamentos estavam “rotos” em vários pontos. No caso do chafariz da Conceição, tinham sido abertos poços “nos lugares das vertentes”. O mesmo ocorria no caso do chafariz do Rosário. Esses mananciais usados desde a primeira metade do século XVIII, forneciam já quase em fins do século XIX água “muito pouca”, “em relação à necessidade” (em decorrência do que chamaríamos hoje (“aumento da demanda”). Os poços contíguos aos mananciais também tinham seu volume de água reduzido durante os estios e mais ainda nos casos de secas, como acontece hoje.

Cuiabá até hoje é abastecida por inúmeros poços, principalmente na zona rural e na região do Coxipó da Ponte. Hoje as técnicas de envelopamento desses poços são mais modernas. O perigo está nos poços artesanais e caseiros espalhados pelas cidades. Poços antigos são encontrados em várias casas do Centro Histórico de Cuiabá, à exemplo do Museu da Imagem e do Som, apenas como símbolo da existência em função da contaminação do solo.

Chegava-se, assim, no fim dos anos 1879, aos limites algumas fontes de água potável que circundaram o centro da vila e da cidade de Cuiabá durante cerca de 150 anos. Mas nesse mesmo ano de 1879, empresário local teve sua proposta de reativação de uma das bicas do Prainha aceita pelo governo provincial: Consta-nos que o Exmo. Presidente aceitou os oferecimentos constantes da proposta em que o Sr. João Batista de Souza se obrigava, caso o Governo da Província quisesse, a abastecer de água uma das bicas, atualmente secas – da Prainha. Cremos que S. Exa., considerou ajuizadamente: l° porque é nossa convicção que o Sr. Batista de Souza homem a cumprir com o prometeu – e não prometeria sem consciência de consegui-lo; 2º porque, ainda quando falissem as convicções do Sr. Batista de Souza, a experiência, realizada em apenas uma das Bicas, que é o que quer o proponente, custaria uma quantia insignificante aos cofres provinciais, melhor que deixar de tentá-la pelo temor de um prejuízo provável.

Simultaneamente nova fonte de água doce potável veio ampliar as alternativas de abastecimento da cidade, merecendo destacados comentários, nos jornais locais: O Sr. Francisco Alexandre Ferreira Mendes mandou abrir em sua Chácara um poço que tal abundância d‘água potável tem dado, que fornece, segundo nos conta, diariamente, as pessoas que se tem ressentido da falta desde elemento 200 potes, tendo dia de 300 a 600, denominado manancial do Poço São João.

O Centro Histórico de Cuiabá não possui sistema de coleta e tratamento de esgoto sanitário. O “desabamento das matas e outras causas relativas aos lugares por muito tempo habitados e cultivados”, “os atuais chafarizes (…) só podem ser considerados monumentos existentes na cidade de Cuiabá e, os poços todos desativados. O que resta é sensibilizar aos governantes que Água é Vida e sem água ninguém pode viver. Que em tempos de políticas e políticos essa condição pode ser lembrada. Neste caso Saneamento Básico é essencial.

NEILA BARRETO é jornalista, historiadora e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso.

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