Al Pacino conta como foi escolhido e quase perdeu o papel em ‘O poderoso chefão’: ‘Quem era eu para aquilo cair no meu colo?’

Chegou esta semana às livrarias do país a tão aguardada autobiografia do ator Al Pacino. No Brasil, “Sonny Boy” está sendo distribuído pela Editora Rocco, que liberou para O GLOBO o trecho abaixo, em que o ator narra a ligação com Francis Ford Coppola, o diretor que iria “mudar a minha vida” ao convidá-lo para viver Michael Corleone em “O poderoso chefão”. Mais que isso, diz que não achava que fosse conseguir o papel e conta como, de fato, quase foi demitido. E confessa que tampouco queria conhecer o maior ator da época, o protagonista do filme, Marlon Brando. Mas Pacino seguiu adiante. E o resto é história. Aquele papel representou para ele o fim definitivo do anonimato e a explosão da carreira de um dos mais icônicos atores americanos.

Leia a seguir o relato bem-humorado do ator:

 

“…Eu era um desconhecido, e o filme que Francis queria fazer comigo foi recusado em todo lugar e nunca seria produzido. Então voltei para casa e achei que nunca mais teria notícia dele. Meses se passaram e aí, um dia, no meio da tarde, recebi uma ligação. Do outro lado da linha, ouvi um nome e uma voz do passado: Francis Coppola.

Primeiro, ele me disse que ia dirigir ‘O poderoso chefão’. Pensei que talvez ele estivesse fantasiando. Do que estava falando? Como tinham dado ‘O poderoso chefão’ para ele? Eu havia lido o romance de Mario Puzo, que tinha virado um grande sucesso; era importante para qualquer um estar envolvido naquilo. Mas, quando se é um jovem ator, você nem pensa nesse tipo de coisa. Conseguir um papel num filme já é um milagre. Oportunidades assim não existem para você. Parecia absurdo.

E aí pensei: Ei, talvez seja possível. Eu tinha passado um tempo com Francis. Vi que ele se portava com confiança, e isso me deu fé nele. Mas não era algo que se fazia na época. Será que o estúdio, Paramount, não ia querer procurar diretores mais velhos, com maior reputação, em vez desse intelectual vanguardista talentoso? Não combinava com minha percepção de Hollywood.

Aí, Francis disse que queria que eu fizesse Michael Corleone. Pensei: Agora ele foi longe demais. Comecei a duvidar que fosse ele mesmo no telefone.

Talvez eu estivesse tendo uma crise nervosa. Um diretor te oferecer um papel por telefone, não por meio de um agente ou algo do tipo, e aquele papel, o maior de todos — era uma chance de um em cem milhões. Eu nem pensava que fosse uma chance, porque não acreditei. Quem era eu para aquilo cair no meu colo? Quando finalmente desliguei o telefone com Francis, estava meio atordoado.

Pensando bem, eu não tinha um interesse no show business e nem sei por quê. Sabia que atuar seria a minha profissão, mas, por algum motivo, o negócio como um todo era estranho a mim e ao meu estilo de vida. Eu não morava em Los Angeles, que era o centro de tudo. Eu estava em Nova York, e na ilha de Manhattan as coisas estavam acontecendo para mim. Eu era uma pessoa do teatro. Tinha meu Tony e meu Obie, o Actors Studio e minha turma de colegas atores. Hollywood era uma cidade distante, e filmes eram um mundo diferente do teatro. Eu dizia a Charlie:

— Como os atores conseguem? Você acaba de fazer uma cena num filme e eles te dizem: Vai fazer de novo.

E você faz, coberto de fios e de frente para uma câmera com um monte de gente lá em volta, respirando e entrando no seu campo de visão. Ah, e estou esquecendo a fumaça — eles enfumaçam a sala, acho que para a câmera.

A diferença entre atuar em um filme e atuar no palco era como estar naquela corda bamba. Na atuação cinematográfica, a corda está no chão — você sempre pode voltar e tentar de novo. Atuação de palco é estar a dez metros de altura. E, se não conseguir, você cai. Essa é a diferença da adrenalina necessária para ser um ator de teatro.

Era como eu me sentia na época. Eu mudei, mas, cara, era preciso estar lá para ver. Eu amava ver a cara dos não atores que eram escalados num filme para fazer suas profissões da vida real, tipo quando contratavam um porteiro de verdade ou um padre que sabe falar latim, sem experiência nenhuma de como é fazer um filme. No fim do dia de trabalho, eles em geral saíam aturdidos e precisavam ser conduzidos de volta ao meio de transporte que os levara até lá.

Filmes eram o negócio de Marty Bregman, e, uma vez que eu estava com Marty Bregman, eu fazia parte desse negócio. Marty disse:

— Eu não vou te transformar numa estrela, você é uma estrela.

Eu não me via assim, mas ele via. Era o ramo dele, ele tomava essas decisões.

Eu era pragmático. A única coisa que sabia era que havia papéis que eu conseguia fazer e outros que não. Sentia isso com muita força. A maioria dos papéis eu achava que outros atores eram capazes de fazer melhor, e ainda penso assim.

‘É assim que fazem filmes?’

 

Meu primeiro papel cinematográfico não veio de Marty Bregman, mas de uma grande diretora de elenco chamada Marion Dougherty, que também tinha feito ‘Perdidos na noite’ e me visto em ‘The Indian wants the Bronx’. Ela me ofereceu um papel menor, de um dia, em “Uma garota avançada”, uma comédia sobre amadurecimento feita para Patty Duke, onde eu interpretaria um cara que ela conhece numa festa. Patty foi incrivelmente fofa comigo.

Mas eu fui um desastre e a coisa toda me deprimiu. Cheguei de manhã cedo porque me disseram para chegar de manhã cedo, mais cedo que qualquer um que estivesse fazendo qualquer coisa no filme. Não tinha com quem conversar, então fiquei sentado e esperei. E esperei. E esperei. E, enquanto esperava, pensava: É assim que fazem filmes? Não quero fazer isso com a minha vida.

Eu não tinha dormido na noite anterior porque a cena era muito cedo e, quando me colocaram no figurino, as roupas me deram coceira. Mas é que eu sou assim, sempre fui. Eu olho para uma situação e falo: O que estou fazendo aqui? E parece não importar onde seja, em qual situação eu esteja. Quero ir embora. Não vou, porque não quero ser grosso, então eu fico. Mas estou doido para ir embora.

Dancei com Patty e disse minhas falas — “Você tem um belo corpo, sabia? Escuta, você é fácil?” —, mas não entendi absolutamente nada do que diabos eu estava falando, ou por que estava dizendo aquilo, ou como ficaria. Entrou no filme. Meu primeiro crédito no cinema.

Só fiz outro filme quase dois anos depois. ‘Os viciados’ era algo que Marty Bregman ajudara a cultivar e que ele via para mim. O roteiro, de John Gregory Dunne e Joan Didion, era uma história real sobre dois jovens viciados em heroína, um cara e uma garota, e seus encontros e desencontros durante um período de escassez de droga. Marty também representava o diretor, Jerry Schatzberg, que era mais conhecido como fotógrafo e não tinha feito muita coisa ainda no cinema, e os dois gostavam de mim no papel desse cara, chamado Bobby. Achei que era algo que eu conseguiria fazer. Algumas pessoas podiam ter feito, mas era um papel relativamente adequado para mim. Eu tinha feito meu nome no teatro com esse tipo de personagem das ruas, então fiquei grato de ter essa escolha para um primeiro filme.

O professor universitário que Francis me oferecera, bom, provavelmente era um pouco forçado, apesar de eu gostar do papel. Acho que, no fim, é isso que importa.

Se eu sinto alguma coisa por um papel, vale a pena tentar. Quando fiz meu último teste para entrar no Actors Studio, fiquei grato por poder interpretar dois personagens diferentes naquela noite. Um foi de ‘O conselheiro de Elmer Rice’, e o outro de ‘Look, we’ve come through’, de Hugh Wheeler. No primeiro, interpretei um comunista fanático e furioso, um revolucionário, em uma cena com um promotor interpretado por Owen Hollander. No outro, fui um michê gay em uma cena com Nathan Joseph. Os dois caras com quem fiz os testes eram amigos na época. Os personagens dessas duas cenas eram totalmente diferentes, e acho que isso ajudou os jurados, que incluíam Elia Kazan, Harold Clurman e Lee Strasberg. Ver a amplitude daqueles personagens, que não podiam ser mais diferentes, talvez tenha ajudado a dar a eles um motivo para me darem uma chance.

Atores precisam tomar cuidado para não serem rotulados: sua aparência é o que identifica você e, às vezes, o ator fica preso nos mesmos tipos de papel. Não acho que eu teria durado desse jeito. Um dos motivos pelos quais eu gostava de fazer teatro de repertório era que podia interpretar papéis para os quais normalmente não seria escalado.

Quando se é um jovem ator quase sem experiência no cinema que recebe a chance de um protagonista como ‘Os viciados’, você diz: Ok, eu vou fazer o que for preciso para superar esse obstáculo. Mas existem alguns obstáculos que eu não conseguia me obrigar a superar. Pensei que tivesse o papel, mas, como dizem, os contratos não estavam assinados e o papel ainda não era meu. Nesse meio-tempo, alguém me pediu para fazer uma leitura para uma peça — outro ator tinha faltado e precisavam que eu substituísse um dos protagonistas. Era um papel que eu não conhecia, o que significava que seria uma leitura fria, sem preparação antes da leitura para a plateia.

Estávamos no palco. Os atores estavam recebendo seus roteiros e eu estava olhando as páginas, tentando achar o nome do personagem que eu devia interpretar. A plateia estava quase cheia, mas espiei e vi algumas pessoas que parecia que não deviam estar lá. Para minha surpresa, uma delas era Nick Dunne, o produtor de ‘Os viciados’, junto com o irmão, John, Gregory Dunne e Joan Didion, que coescreveram o roteiro. Eles foram com umas pessoas que eu não reconheci. Fiquei chocado. É preciso entender: nunca me pediram para fazer teste para o filme; me ofereceram o papel.

Agora, se de repente estavam esperando que eu fizesse um teste para isso, eu não queria que a avaliação final fosse numa leitura fria de uma peça com a qual eu não estava nada familiarizado. Pensei: Isso não é jeito de se tratar uma dama.

Desci do palco e fui até Nick e as pessoas que estavam com ele. Falei:

— Cara, desculpe, vocês precisam ir embora.

Não foi casual. Eles ficaram surpresos. Continuei:

— Não vou conseguir fazer isso com vocês aqui. Parece que estão me julgando. Eu fico desconfortável.

E ele e seus colegas se levantaram e foram embora.

Acho que fiz a coisa certa, mas esse é o risco que é preciso correr às vezes, quando o lobo está na porta. O tempo todo eu penso: Al, o que você está fazendo? Mas, às vezes, quando agimos por impulso, o impulso pode nos salvar. As pessoas dizem que eu me arrisco, e não quero parecer que estou me vangloriando aqui, mas, quando sinto que tem algo errado, não estou nem aí.

E aquilo pareceu importante para mim. Eu tenho medo como todo mundo.

Não faço nada em relação a várias coisas que deveria fazer. Não é a pior filosofia do mundo dizer: “Ah, tanto faz. Deixa pra lá. E daí?” Mas, de vez em quando — estou falando de décadas —, eu digo: Não, isso aqui não.

‘Os viciados’ acabou sendo uma vitrine para mim. É cultuado até hoje, e Jerry Schatzberg fez um trabalho magnífico. Gostei demais de trabalhar com Kitty Winn, que fez minha namorada e parceira de vício. Eu não a entendia e ela não me entendia, mas nos dávamos bem. Às vezes, ela me lançava um olhar perplexo diante de algumas coisas que eu dizia. Eu falava o que me vinha à cabeça e nunca sabia o que ela estava pensando. Não fazia ideia de quem ela era. E tudo bem. Ela ganhou o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Cannes por ‘Os viciados’. Depois disso, fez ‘O exorcista’ e mais alguns filmes, antes de parar de atuar. Era uma pessoa muito envolvente e gentil de se conviver, agradável e nem um pouco arrogante. Mas simplesmente não gostava do ramo e não conseguia aceitar algumas coisas que rolavam. Todos os segredos obscuros.

‘A Paramount não queria que eu interpretasse Michael Corleone’

Eles queriam Jack Nicholson. Queriam Robert Redford. Queriam Warren Beatty ou Ryan O’Neal. No livro, Puzo colocava Michael se referindo a si mesmo como “o veadinho da família Corleone”. Era para ser pequeno, de cabelo escuro, bonito de uma forma delicada, não uma ameaça visível para ninguém. Não parecia os caras que o estúdio queria. Mas isso não significava que precisava ser eu.

Significava, porém, que eu teria que fazer um teste de tela para o papel, o que eu nunca havia feito antes, e teria que pegar um avião até a Costa Oeste para isso, coisa que simplesmente não queria fazer. Não estava nem aí que fosse ‘O poderoso chefão’. Não queria ir à Califórnia. Mas Marty Bregman me disse:

— Você vai entrar nessa porra desse avião.

E ele me trouxe meio litro de uísque para eu poder beber no voo, e foi assim que eu cheguei lá.

A Paramount já tinha rejeitado o elenco inteiro de Francis. Rejeitaram Jimmy Caan e Bob Duvall, que eram atores bem estabelecidos, a caminho do que se tornariam. Rejeitaram Brando, pelo amor de Deus. Estava bem claro desde o momento que cheguei ao estúdio que também não me queriam. E eu sabia que não era o único sendo considerado. Muitos dos jovens atores da época estavam lendo para o papel de Michael. Era uma sensação desagradável.

Mas ‘Os viciados’ foi responsável por me dar o empurrão final. Ainda não tinha sido lançado, mas, por sorte, Jerry Schatzberg deu a Paramount oito minutos de gravação minha, que ajudaram a convencer o estúdio a pelo menos me dar uma chance.

O livro ‘O poderoso chefão’ era um sucesso enorme, então todo mundo estava falando do assunto e animado com o filme que ia ser feito. Antes mesmo de eu fazer meu teste de tela, Francis me levou a um barbeiro em San Francisco, porque queria que Michael tivesse um corte de cabelo autêntico dos anos 1940. O barbeiro ficou sabendo que íamos fazer o filme e chegou a dar um passo para trás, absorveu a informação e começou a tremer. Depois ficamos sabendo que ele teve um ataque cardíaco. A notícia era que, nos bastidores, muitas coisas dependiam desse filme. Executivos da Paramount estavam irados uns com os outros e discutindo aos berros. Dava para sentir a tensão em todo lugar. Então, fiz minha coisa zen de “isso também passará”.

Falei a mim mesmo: “Vá até o personagem. O que está acontecendo na cena? Para onde você vai? De onde você veio? Por que está aqui?”

Passei por alguns dias de teste de tela usando uma versão inicial do uniforme do Exército de Michael e uma expressão abatida. Eu sempre tinha essa cara. Acho que era uma fachada que carregava comigo, porque me fazia conseguir passar por tudo. Mas devo dizer que a cena que me pediram para fazer não era a melhor que podiam ter escolhido. Era a cena de abertura do casamento, com Michael explicando à namorada, Kay, o que a família realmente fazia e quem eram todos os envolvidos da operação do pai dele. Era uma cena mundana de diálogo, só eu e Diane Keaton sentados numa mesinha sem graça, tomando taças de água que fingíamos ser vinho, enquanto eu falava dos costumes dos casamentos sicilianos. Era impossível o impacto do papel ser transmitido. Minha interpretação de Michael era como plantar um jardim; levaria certo tempo na história para as flores crescerem. Como eu poderia demonstrar minhas ideias sobre ele nessa cena? Eu não conseguia dar vida ao personagem naquela cena porque ninguém conseguiria.

Mas eis o segredo: Francis me queria. Ele me queria e eu sabia disso. E não tem nada igual a quando um diretor quer você. É a melhor coisa que pode acontecer com um ator, de verdade. Ele também me deu um presente na forma de Diane Keaton. Havia algumas atrizes fazendo teste para o papel de Kay, mas o fato de ele querer me colocar com Diane sugeria que a atriz tinha uma vantagem no processo. Eu sabia que ela estava indo bem na carreira e tinha aparecido na Broadway em peças como ‘Hair’ e ‘Sonhos de um sedutor’, com Woody Allen. Alguns dias antes do teste de tela, conheci Diane num bar no Lincoln Center e nos demos bem de cara. Era fácil conversar com ela, e ela também me achava engraçado. Eu senti na hora que tinha uma amiga e aliada.

Quando soube que o papel com certeza era meu, liguei para minha avó para contar.

— Sabia que eu vou estar em ‘O poderoso chefão’? Vou fazer o papel de Michael Corleone.

Ela respondeu:

— Ah, Sonny, olha só! O vovô nasceu em Corleone, ele era de lá.

Avô era de Corleone

 

Eu não sabia onde meu avô tinha nascido, só que ele era da Sicília — uma vez que meu avô chegou aos Estados Unidos e não tinha ninguém correndo atrás dele, ele deixou por isso mesmo. Agora, saber que ele era de Corleone, a própria cidade que dava o nome ao meu personagem e sua família? Pensei: Devo estar recebendo ajuda de algum lugar, porque, senão, como uma coisa tão impossível — eu conseguir aquele papel — poderia acontecer, para começo de conversa?

Eu ainda tinha que descobrir quem Michael era para mim. Antes do início das filmagens, eu dava longas caminhadas para cima e para baixo em Manhattan, da 91st Street ao Village e depois voltando, só pensando em como iria interpretá-lo. Na maioria das vezes eu ia sozinho, outras vezes me encontrava com Charlie no centro e caminhávamos de volta juntos para a parte alta da cidade. Michael começa como um jovem que já vimos antes, se virando, meio distraído, meio desleixado. Ele está lá e ao mesmo tempo não está. Tudo vai se intensificando enquanto ele se voluntaria para acabar com Sollozzo e McCluskey, o traficante e o policial corrupto que conspiraram para matar o pai de Michael. De repente, há uma grande explosão dentro dele.

Isso é mapeado no romance, porque um livro pode dar à narrativa todo o tempo que ela precisa. Você espera e vê o que acontece. Mas o que eu iria fazer no filme?

Antes de começarmos a filmar ‘O poderoso chefão’, eu me reuni com Al Lettieri, um ótimo cara e ator que ia fazer o papel de Sollozzo. Ele apenas me disse:

— Você precisa conhecer um cara. Vai ser bom para o que você está fazendo.

Eu meio que sabia do que ele estava falando, então fomos. Pegamos o carro um dia até um bairro residencial nos arredores da cidade.

Little Al me levou a uma casa tradicional, bonita, bem cuidada. A gente passa por esse tipo de casa o tempo todo e nem pensa em quem mora lá.

Ele me levou lá para dentro e me apresentou ao chefe da família, um cara que parecia um empresário normal. Eu talvez tivesse chutado que fosse um executivo de Wall Street, um especialista em finanças ou um gerente de fundos de investimento. Apertei a mão dele e dei oi, e ele foi muito acolhedor. Tinha uma família amorosa, uma esposa que nos serviu bebidas e petiscos usando porcelana fina e dois filhos mais ou menos da minha idade. Eu era só um ator maluco que tinha entrado na casa dele, tentando absorver tudo o que podia.

Nossa conversa continuou educada e superficial. Nunca perguntei ao Little Al por que ele tinha me levado lá, mas pensei no que ele dissera antes de irmos, como aquela visita seria útil para aquilo em que eu estava trabalhando. Little Al conhecia uns caras. Uns caras de verdade. E agora estava me apresentando a um deles.

Eu estava tendo um gostinho de como essa história se parecia e operava na realidade, não como era mostrada nos filmes. Não que nosso anfitrião fosse entrar em nenhum desses detalhes conosco. Eu não podia saber esses detalhes. Aliás, acabamos bebendo e jogando. Muitas luas mais tarde, apareceram fotos daquela noite, mostrando eu de moletom, rindo com um drinque na mão enquanto Little Al me mostrava uma arma. Uma noite com os caras.

Eu era um garoto do sul do Bronx. Sou italiano. Sou siciliano também. Sabia como era sentir que as pessoas estavam sempre achando que você tinha pelo menos alguma ligação com o crime organizado. Qualquer nome que terminava com vogal era sempre averiguado por ter possíveis conexões com aquele mundo. Em vez de ser comparado a Joe DiMaggio, você era associado a Al Capone.

A maioria de nós nunca vai viver com o crime, quanto mais perpetrá-lo.

E, ainda assim, somos fascinados por essas pessoas que estão decididas a não seguir as regras da sociedade, que encontram outra forma de fazer as coisas. O criminoso é um tipo de personagem particularmente americano. Crescemos fingindo ser Jesse James e Billy the Kid. Eram heróis populares.

Viraram parte de nosso folclore. A história da máfia também faz parte desse folclore.

Minha filmagem em ‘O poderoso chefão’ começou com a cena de abertura do casamento, que levou mais ou menos uma semana para ser filmada em Staten Island. Saindo de minha humilde vida cotidiana, me vi mergulhado no set de um enorme filme hollywoodiano, cheio de equipamentos, luzes quentes e plataformas móveis, gruas e tripés, microfones pairando acima das nossas cabeças e uma companhia de atores com centenas de figurantes, todos trabalhando sob a direção de Francis.

A escala daquilo tudo era inédita para mim. Mas, ao mesmo tempo, eu me sentia confortável ali, e foi fácil me adaptar. Era um cenário grande, com muita gente, mas eu me acostumei ao ambiente. Você era mandado para algum lugar — digamos, a mesa de maquiagem, e as salas para isso eram enormes. E você ia e se sentava num canto da sala. Via pessoas e acenava.

Ninguém sabia quem eu era. Então, eu só entrava lá, aproveitava o meu tempo e ficava tranquilo.

Depois eu começava a trabalhar. Sempre sentia uma conexão natural com a câmera. Mesmo no teatro, as pessoas mencionavam:

— Você levaria jeito com uma câmera.

Eu não sabia exatamente o que isso significava no início. Talvez tivesse a ver com ter crescido vendo filmes. A maioria dos atores, quando começam no palco, sempre ouvem: “Mais alto! Mais alto!” Ser filmado é algo mais íntimo. Em geral, eu não sabia onde a câmera estava, mas um bom câmera entendia que eu não tinha tanta experiência e cuidava disso. Em ‘O poderoso chefão’, fiquei nas mãos seguras do grande Gordy Willis.

Diane e eu passamos aqueles primeiros dias rindo um com o outro, tendo que interpretar aquela cena expositiva inicial do casamento que tínhamos feito no teste de tela, e odiávamos aquilo. Baseando-se só naquela única cena, tínhamos certeza de que estávamos no pior filme já feito e, quando terminávamos de gravar as cenas do dia, voltávamos a Manhattan para nos embebedarmos. Nossa carreira estava acabada, pensávamos.

Lá em Hollywood, a Paramount começou a ver o filme que Francis tinha gravado, e mais uma vez estava questionando se eu era o ator certo para o papel. Estava rolando um boato no set de que eu ia ser demitido. Dava para sentir a perda de gás quando filmávamos. Havia um desconforto entre as pessoas, até entre a equipe, quando eu estava trabalhando. Eu estava muito consciente disso. Diziam que eu ia ser mandado embora e, provavelmente, o diretor também. Não que Francis não estivesse indo bem — eu é que não estava. Mas ele era o responsável por me colocar no filme.

‘Você não está bem’

 

Eu me sentia deslocado fazendo aquele papel e, mesmo assim, sentia que era meu lugar — coisas estranhas de se sentir ao mesmo tempo. Ninguém quer estar onde não é desejado. Talvez tivesse sido mais fácil ir embora e me afastar daquele desconforto. Agora, se tivessem me demitido, será que eu teria sentido que perdi alguma coisa? Provavelmente, mas eu já tinha perdido coisas antes e me recuperado. Não considerava ser de fato importante ter uma carreira. Nunca pensava nesses termos.

Finalmente, Francis decidiu que algo tinha que ser feito. Uma noite, ele me chamou para encontrá-lo no Ginger Man, um restaurante frequentado por bebuns do Lincoln Center, onde atores, dançarinos, maestros e contrarregras se enfileiravam no bar. Ele estava jantando lá com a esposa, os filhos e um pequeno grupo, e quando o encontrei em sua mesa, disse:

— Escuta, quero falar com você um minuto.

Ele não me convidou para me sentar com eles. Fiquei ali em pé me perguntando: O que ele está fazendo? Está cortando seu bife e me olhando como se eu não fizesse parte de nada — como se eu fosse só um ator isolado, que tinha ido procurar uma esmola. Então continuei ali parado, sozinho, enquanto ele sentava com a família e levantava a cabeça para me olhar. Finalmente, Francis disse:

— Você sabe o quanto é importante para mim, o quanto tenho fé em você.

Naquela altura, estávamos gravando ‘O poderoso chefão’ há mais ou menos uma semana e meia. E Francis falou:

— Bom, você não está indo bem.

Eu senti essa na boca do estômago. Foi aí que finalmente percebi que meu emprego estava em jogo. Falei a Francis:

— O que fazemos, então?

Ele respondeu:

— Eu juntei trechos de material bruto que já filmamos. Que tal você mesmo dar uma olhada? Porque não acho que está dando certo. Você não está dando certo.

Entrei numa sala de projeção no dia seguinte. Eu já tinha sido avisado que seria possível que eu fosse sair do filme. E, quando olhei as gravações, todas as cenas bem do começo do filme, pensei comigo mesmo: Não acho que tem nada de espetacular aqui. Não sabia o que achar. Mas o efeito certamente era o que eu queria. Eu não queria ter visto.

Meu plano todo para Michael era mostrar que o garoto não estava ciente das coisas, e eu não estava oferecendo uma personalidade particularmente carismática. Minha ideia era a de que aquele cara vinha do nada. Esse era o poder da caracterização. Era a única forma de funcionar: o surgimento dessa pessoa, a descoberta de sua capacidade e do seu potencial. E, se você notar, ele ainda não é exatamente o Michael quando vai ao hospital salvar o pai. Mesmo ali, ele só se torna Michael quando olha para Enzo, o padeiro, que ele instruíra a ficar com ele na porta do hospital, e vê que a mão de Enzo está tremendo e a dele não. No fim do filme, eu torcia para ter criado um enigma. E acho que era também o que Francis estava esperando. Mas nenhum de nós sabia como explicar aquilo ao outro.

Sempre se acreditou que Francis reorganizou o cronograma de gravações para dar aos céticos de Hollywood algum incentivo para acreditarem em mim e me manterem no filme. Não há um veredito sobre ele ter feito isso de forma deliberada ou não, e o próprio Francis negou ter orquestrado isso em meu benefício, mas ele realmente adiantou a filmagem da cena do restaurante italiano, onde o inexperiente Michael vai se vingar de Sollozzo e McCluskey.

Aquela cena só seria filmada alguns dias depois, mas, se algo não tivesse acontecido para que eu pudesse mostrar do que era capaz, talvez não houvesse um “depois” para mim.

Então, durante toda uma noite de abril, eu gravei aquela cena. Passei quinze horas daquele dia num restaurante minúsculo embaixo de uma linha de trem elevada, com Little Al Lettieri e o magnífico Sterling Hayden, que fazia McCluskey. Os dois foram muito preciosos para mim. Eles sabiam que eu estava passando por um momento difícil, sentindo que carregava o mundo nas costas, sabendo que a qualquer dia eu poderia ser cortado.

Ali estávamos, num salão morto, fétido, preenchido com fumaça e num calor infernal — não tínhamos trailers para onde fugir, nem assistentes de produção vindo perguntar: “Quer uma água?” Nada disso. Eu estava apenas ali, sentado, pensando: Como vocês aguentam esse negócio? A absoluta monotonia daquilo seria capaz de matar alguém.

Sterling e Al Lettieri me ajudaram a ficar calmo; deram o tom e foram exemplos para mim. Eu os via como pessoas que sabiam o que fazer e como se portar, e eles cuidavam de mim como um colega. Mas, no fim, o roteiro exigia que eu pedisse licença para usar o banheiro, achasse uma arma escondida e explodisse o cérebro deles.

Então eu precisava sair correndo do restaurante e fugir pulando em um carro em movimento. Eu não tinha substituto. Não tinha dublê. Precisei fazer isso sozinho. Pulei e errei o carro. Agora, eu estava caído de costas numa sarjeta na White Plains Road no Bronx, olhando o céu. Tinha torcido o tornozelo tão feio que não conseguia me mexer.

Todo mundo da equipe estava ao meu redor. Estavam tentando me levantar, me perguntando: “Seu tornozelo está quebrado? Você consegue andar?” Eu não sabia.

Fiquei lá deitado pensando: Isto é um milagre. Ah, Deus, você está me salvando. Não preciso mais fazer este filme. Fiquei chocado com a sensação de alívio que me atravessou. Ir trabalhar todo dia, me sentindo indesejado, como um subalterno, era uma experiência opressora, e aquela lesão poderia ser minha libertação dessa prisão. Pelo menos agora podiam me demitir, escalar outro ator como Michael e não perder todo o dinheiro que já tinham colocado no filme.

Mas não foi o que aconteceu.

Eles filmaram o resto da cena do carro com um dublê que apareceu do nada e injetaram cortisol no meu tornozelo até eu conseguir ficar de pé de novo. Aí, Francis mostrou a cena do restaurante ao estúdio e, quando eles assistiram, havia algo lá. Por causa daquela cena que eu tinha acabado de fazer, eles me mantiveram no filme. Então eu não fui demitido de ‘O poderoso chefão’. Apenas continuei fazendo o que já estava fazendo, o que tinha pensado naquelas solitárias caminhadas para lá e para cá em Manhattan.

Almoço com Marlon Brando

 

Eu tinha um plano, uma direção que realmente acreditava ser o caminho a seguir com esse personagem. E tinha certeza de que Francis concordava.

Foi preciso esforço para me transformar em Michael Corleone.

Eu precisava ser apresentável, o que não era natural para mim. Eles me forçaram a ficar apresentável. Eu chegava todo dia de manhã para interpretar Michael com duas ou três caras diferentes. Uma de cada lado da minha cabeça e uma terceira no meio. Em algumas noites, eu não dormia nada ou quase nada. Em outras, tinha bebido e usado tanto de tanta coisa que meu rosto ficava torto. Dick Smith, o grande maquiador, precisava consertar. E, quando eu saía da cadeira dele, tinha virado Michael.

Eu havia sido brevemente apresentado a Marlon Brando num jantar com todos os membros do elenco antes de começarmos a filmar. Agora, enquanto estávamos nos aprontando para fazer a cena em que Michael encontra Vito no hospital, Francis disse:

— Que tal você e Brando almoçarem juntos?

Aquela ia ser a grande conversa. Na verdade, eu não queria conversar com ele. Não achava necessário. O desconforto que eu sentia só de pensar — é sério, tinha mesmo que almoçar com ele? Juro, aquilo me assustava pra cacete. Ele era o maior ator vivo da época. Eu cresci vendo atores como ele — pessoas imponentes como Clark Gable e Cary Grant. Que eram famosos quando a fama significava algo, antes de perder a graça. Mas Francis disse: “Você tem que ir”, então eu fui.

Meu almoço com Marlon foi em um quarto modesto no hospital em que estávamos filmando, na 14th Street. Ele estava sentado em uma cama e eu, na outra. Ficou me fazendo perguntas: De onde eu era? Há quanto tempo era ator? E ele estava comendo frango à cacciatore com as mãos, que estavam cobertas de molho de tomate. O rosto também. Quaisquer que tenham sido as palavras dele, minha mente consciente estava fixada naquela sujeira toda à minha frente. Ele estava falando — blá-blá-blá —, e eu simplesmente hipnotizado. O que ele ia fazer com o frango? Torci para não me pedir para jogar no lixo para ele. Ele deu um jeito de se livrar da comida sem se levantar, então me olhou de um jeito estranho, como se para perguntar: No que você está pensando? Eu estava me perguntando como ele ia se limpar. Será que era para eu pegar um guardanapo para ele? Antes que eu pudesse fazer isso, ele esfregou as mãos na cama branca do hospital e manchou os lençóis com molho, sem nem pensar, e continuou falando. E pensei: É assim que os astros de cinema se comportam? Você pode fazer o que quiser.

Quando nosso almoço terminou, Marlon me olhou com aqueles seus olhos gentis e disse:

— É, garoto, você vai ficar bem.

Tinham me ensinado a ser educado e grato, então, provavelmente, eu só agradeci. Estava assustado demais para dizer qualquer coisa. O que eu devia ter dito era: “Como você define ‘bem’?”

Meus colegas não podiam ter me dado mais apoio, todos eles. Quase ninguém sabia quem eu era, e, quando ninguém está tentando te impressionar, você vê quem as pessoas são de verdade. Eles viam que eu estava sofrendo e me confortavam muito. Atores são pessoas sensíveis e por isso ficam mais sintonizados ao que você está sentindo. Eles vivem com as emoções. Nossa vida é sentir as emoções de todo mundo para poder interpretar nossos personagens. Os atores que eu conheci que são especialmente talentosos têm uma antena forte para captar isso. Eu tive essa sensação de forma especial de John Cazale, que já conhecia e que era um amigo próximo meu e de Jimmy Caan. O roteiro tinha dado a eles os papéis de meus irmãos mais velhos e conselheiros no filme, mas eles assumiram esses papéis com naturalidade na forma como interagiam comigo. Eram instintivamente protetores e não iam me deixar fracassar. Também havia Bob Duvall e Richard Castellano, Abe Vigoda e todos os outros, que estavam cem por cento ao meu lado. Eu sentia que eles gostavam de mim de verdade, o que ajuda em qualquer situação.

O que acho que os espectadores receberam com ‘O poderoso chefão’, o que levou o filme além e realmente trouxe impacto, foi essa ideia de família. As pessoas se identificavam com os Corleone, se viam de alguma forma neles e se percebiam conectados aos personagens e suas dinâmicas como irmãos e irmãs, pais e filhos. O filme tinha o drama e a narrativa empolgante de Mario Puzo, a mágica da direção de Coppola e uma violência real.

Mas, no contexto daquela família, tudo virava outra coisa. Não eram só pessoas da cidade que se relacionavam com os Corleone — aquele senso de familiaridade levou o filme a todas as partes do mundo.

Marlon também me mostrou generosidade, mas não acho que guardou tudo para mim, porque compartilhou com os espectadores. É o que tornou a interpretação dele tão memorável e cativante. Todos nós temos a fantasia de ter alguém como Don Vito com quem contar. Tanta gente é abusada nesta vida, mas, se você tem um Vito, tem alguém a quem recorrer, e ele cuida do problema. Esse era o motivo pelo qual as pessoas reagiram a ele daquela forma no filme. Era mais do que a bravata e a ousadia; era a humanidade subjacente. Era por isso que ele tinha que fazer o Vito de uma forma extravagante — seu tamanho físico, a brilhantina no cabelo, o algodão nas bochechas. O Poderoso Chefão dele tinha que ser um ícone, e Brando o tornou tão icônico quanto Cidadão Kane ou Superman, Júlio César ou George Washington.

Mas Francis tinha muita responsabilidade, como eu ficaria sabendo mais tarde quando estávamos trabalhando na sequência do funeral de Vito. Era uma grande cena que gravamos em Long Island, envolvia grande parte do elenco e levou alguns dias para ser filmada. O sol estava se pondo quando escutei:

— Acabou! Acabou!

Eles me disseram que eu já podia ir embora. Então, naturalmente, fiquei feliz, porque eu podia ir para casa e me divertir um pouco, o que quer que isso significasse. Eu estava a caminho do meu trailer dizendo a mim mesmo: Bom, não estraguei demais as coisas. Eu não tinha falas nem obrigações, e tudo bem.

Enquanto estava voltando, comecei a ouvir o som de alguém chorando, o que meio que se espera num cemitério. Olhei ao redor para ver de onde o barulho estava vindo. E ali, sentado num túmulo, estava Francis Ford Coppola, aos prantos como um bebê. Chorando copiosamente. Ninguém se aproximava dele, então eu fui lá e falei:

— Francis, o que foi? O que aconteceu?

Ele secou os olhos com a manga, pausou, levantou os olhos para mim e disse:

— Eles não vão me dar mais uma chance.

Ele queria filmar a cena mais uma vez, e não tinham permitido. Até ele tinha que obedecer a alguém. E ter aquilo que queria tanto lhe ser negado o magoou de verdade.

Nunca se sabe se um filme vai ser ótimo. Mas é possível saber uma coisa: se o roteiro for bom de verdade — e Mario e Francis escreveram um roteiro muito bom —, existe uma chance. Um ator vem e interpreta seu papel, mas o filme depende muito do que acontece depois, dos cortes do editor e da compreensão da narrativa do diretor. Mas ali, naquele cemitério, pensei: Se essa é a paixão que Francis tem pelo filme, alguma coisa aqui está funcionando. Eu sabia que estava em boas mãos.

Fazer o filme me levou à Sicília pela primeira vez na vida. Eu não estava pronto. Me parecia um enorme inconveniente. E, aí, assim que cheguei, me senti cheio de uma espécie de energia cósmica. Tudo me voltou de pronto, até coisas que eu jamais tinha vivido. Os caminhos que levavam à minha existência haviam começado aqui — de alguma forma, tudo o que eu fui ou viria a ser um dia estava, de alguma maneira, ligado àquele lugar. Foi uma revelação, uma elevação da consciência, e totalmente seminal. Como ator, você sempre está buscando identidade e coisas com que se conecta. Quando voltei da viagem, eu me peguei contando a todos que encontrava pela frente que eles precisavam ver os lugares de onde suas famílias vinham, traçar suas raízes o mais distante possível. É uma forma de se conectar com a realidade, um lembrete de que você existiu e continua existindo.

Eu não conhecia ninguém na Sicília, e as pessoas lá não me conheciam.

Não sabiam qual papel eu estava fazendo em ‘O poderoso chefão’, não sabiam nem que eu tinha origem siciliana. Eu era um ator desconhecido, e ser desconhecido era um prazer. Eu nunca falava com ninguém. Não sabia o que dizer. Mas em todo lugar que eu ia os habitantes locais ficavam curiosos e eram muito gentis. Não tinham muito, mas eram generosos e simpáticos, e sempre convidavam um garoto do filme, ou, na verdade, qualquer um, para entrar e mangiare com eles, em suas casinhas. Eu me sentava em silêncio e comia a comida que me era oferecida.

Quando chegou a hora de filmar a cena do casamento, em que Michael se casa com Apollonia em uma linda cerimônia, fiquei lá parado com meu terno de lã, ao lado de Simonetta Stefanelli, que interpretava minha noiva, e um monte de italianos que não falavam inglês. Não parecia a cena mais desafiadora de filmar, mas lá estava Francis, com um megafone, berrando instruções para mim. Ele disse:

— Al, quero que você faça três coisas. Primeiro, vá lá e fale com as pessoas que fazem parte da cena. Depois, dê as costas para elas, vá até sua noiva e dance a valsa com ela. Depois disso, vá com ela até o carro e saia dirigindo.

Lá estava eu, sr. Ator d’O Método, dizendo a ele:

— Mas, Francis, você precisa entender, eu não falo italiano.

— Não tem problema, Al, inventa alguma coisa.

E eu concordei. O câmera estava a uma distância de uma tomada média, não era um close-up, então não iam ver exatamente o que eu dissesse. Em seguida ele falou:

— Agora vai lá e faz a valsa.

Eu me virei e respondi:

— Mas eu não sei dançar valsa.

Ele sacudiu a cabeça, me olhou bravo e berrou:

— Bom, então só dança com ela e, quando terminar, vai para o carro e sai dirigindo.

Queria que vocês pudessem ver a cara dele quando eu respondi:

— Desculpe, Francis, mas eu não sei dirigir.

Como um garoto do sul do Bronx saberia dirigir, tendo passado a vida toda andando de metrô? Eu só tirei minha primeira carteira de motorista aos trinta e quatro anos. Nesse momento, Francis explodiu:

— Mas por que é que eu te contratei? O que você sabe fazer?

Eu disse:

— Não sei se importa, mas eu sei fazer cestaria, então vou estar um passo à frente quando me carregarem daqui.

Os figurantes caíram na risada assistindo a esse diálogo.

Hoje, olho com carinho para essa cena. Ele era um diretor fazendo um filme, e eu era um ator que não sabia fazer a maioria das coisas que ele estava me pedindo. Mas eu dancei no casamento, falei qualquer coisa em italiano com as pessoas que estavam lá e desci a ladeira, entrei no carro e dirigi aquela porcaria por pouco mais de um metro. É por isso que todos amamos filmes. Tudo é possível.

Em julho, fazia muito calor na Itália. Todos nós estávamos vestindo ternos de lã. Estávamos filmando uma cena que exigia um grande grupo de figurantes enfileirados, até que foi anunciada a pausa para o almoço e as pessoas começaram a se espalhar. O assistente de direção, um dos melhores, um cara muito experiente de Roma, que estava reunindo os figurantes, começou a gritar com aqueles sicilianos como se estivesse falando com burricos:

— Ei, voltem aqui!

Mais uma vez, eu vi aquele chicote invisível sendo estalado, como aquele diretor de The Wicked Cooks tinha feito, e aquilo me incomodou. Aquelas pessoas estavam de pé, no calor, desde o começo da manhã. Um dos homens da fila levantou a mão, falou algo em italiano e apontou para o relógio, porque eram mais ou menos duas da tarde. E o romano disse, em italiano:

— Cala a boca e volta para a fila.

O figurante era um homem baixo e magro, com cabelo grisalho e um rosto bonito. Eu imaginaria que tinha mais de sessenta anos, com uma certa modéstia na expressão. Ele só deu de ombros e saiu andando. Demitiu-se do filme, o que significava que não seria pago. Eu amei sua atitude. Imaginei como devia ser para ele. Que coragem.

Eram pessoas pobres recebendo pouco para ajudar a encher o fundo do filme.

Esse cara não tem dinheiro e está indo embora porque é hora do almoço.

Ele vai a algum lugar comer um queijo e uma fruta. Eu também já tive essa liberdade. Mas não queria trocar de lugar com o cara. Só estava curtindo a fantasia que ele inspirava. Eu o observei e pensei: Eu concordo com isso.

Em espírito. Para mim, ele era um herói.

Quando terminei de filmar ‘O poderoso chefão’, eu estava quebrado.

Não que já tivesse tido muito dinheiro, mas agora estava devendo.

Meu empresário e agentes ficaram com uma porcentagem do meu salário enquanto eu tinha que viver sustentado por Jill Clayburgh. Eu e Jill estávamos um dia em nosso apartamento quando alguém bateu à porta. Abri e encontrei um cara que me entregou um envelope contendo uma notificação.

E pensei: O que é isso? Enquanto eu estava sendo contratado para ‘O poderoso chefão’, a MGM havia me escalado para outro filme de gângster, uma comédia de máfia chamada ‘Quase, quase uma máfia’, e agora estavam me processando. Era como se eu fosse um apostador e os corretores de apostas estivessem atrás de mim. Precisei contratar advogados para me ajudar a sair daquele contrato. Em pouco tempo eu estava devendo quinze mil para os advogados também.

Eu não conseguia pagar para manter a briga com a MGM, então pedi para o chefe do estúdio me encontrar na Pulitzer Fountain na frente do Plaza Hotel, na esquina da 59th Street com a Quinta Avenida. Era um local caótico, cheio de doidos e gente descolada almoçando, homens sérios de chapéu e terno correndo para o trabalho, mulheres empurrando crianças em carrinhos. Nós nos sentamos na beirada da fonte. Eu não era forte como Vito ou Michael Corleone e não tinha aprendido as habilidades de negociação deles. Implorei:

— Vocês estão me matando. Eu não tenho dinheiro e preciso ficar pagando advogados porque vocês não param de me processar. — Parecia tão punitivo. — Por que vocês querem fazer isso comigo? Eu não fiz nada contra vocês. Por que a gente não pode resolver isso de outro jeito?

O cara do estúdio me disse:

— Se você receber um livro ou roteiro que queira fazer, pode mandar para a gente primeiro?

— O que mais? — perguntei.

— Só isso.

Concordei:

— Ok, fechado.

Por dentro, eu estava chorando. Homens de terno me assustavam. Eu nunca sabia do que estavam falando — minha atitude sempre era “aceite, aceite”. Eu simplesmente não tinha o know-how para negociar com eles e precisava aprender a ser esperto nessa área. Antes de ‘O poderoso chefão’ estrear em Nova York, eu só tinha assistido ao filme uma vez, alguns meses antes, quando Francis me mostrara um corte prévio. No fim daquela projeção, falei a Francis o que achava de minha interpretação, e ele me olhou com uma expressão de quase desgosto. Claro que, quando estou vendo um filme ainda não finalizado, não consigo evitar ver coisas que podia ter feito de forma diferente. Mas era de esperar que eu entendesse não estar em posição de falar isso ao diretor do filme, que tinha acabado de passar o último ano de sua vida pendurado na ponta dos dedos na beira de um abismo para conseguir fazer aquilo. Fui insensível: ele teve a bondade de me mostrar o filme e eu fui lá preocupado com minha interpretação, não com o grande filme que ele tinha completado. Às vezes, quando você está começando na carreira de ator, pode ser meio sem consideração. Há outras preocupações, e todas as questões de etiqueta e educação saem pela janela graças aos seus impulsos vaidosos e seu ego idiota. Eu já vi isso acontecer com outras pessoas, devo dizer. Espero que não seja mais assim eu mesmo, mas quem é que pode dizer com certeza?

Fui à estreia de ‘O poderoso chefão’ no Loew’s State Theatre, na Times Square, usando uma gravata-borboleta do tamanho da minha cabeça. Levei Jill, minha avó, minha tia e meu primo Mark, que era como um irmão para mim. Foi como ir ao batismo de um navio, um evento muito pomposo e estranhamente formal. A única coisa que estava faltando era alguém quebrando uma garrafa de champanhe na proa. Só me lembro de ficar numa plataforma com os outros protagonistas ouvindo perguntas da imprensa que eu não conseguia responder. Em seguida fomos para nossos assentos, mas eu não vi o filme. Não quis ver o produto final. Assim que as luzes se apagaram, fui embora.

Sabe, eu tinha muitos sentimentos conflitantes sobre mim mesmo em relação ao filme. Não era capaz de me assistir na tela enquanto outras pessoas faziam o mesmo. Era meio desconfortável, me deixava tímido, quase envergonhado.

Quando eu era mais jovem, acho que ao mesmo tempo precisava de atenção e queria fugir dela. É quase um paradoxo, eu sei, então tentava evitar me colocar naquela situação. Por sorte, eu mudei. Foi como superei meu medo de voar — simplesmente parei de me importar. Tem um trecho de Hamlet que me vem à mente:

De forma alguma; desafio os presságios. Há uma especial Providência na queda de um pardal. Se tem de ser já, não será depois; se não for depois, é que vai ser agora; se não for agora, é que poderá ser mais tarde. O principal é estarmos preparados. Uma vez que ninguém sabe o que deixa, que importa que seja logo?

Que seja!

Saí do teatro e contornei a esquina até um bar na 44th Street com Al Ruddy e algumas outras pessoas que tinham trabalhado no filme. Passei a noite toda bebendo, enchendo a cara. Essa era a expressão perfeita — de cara cheia —, quando você não aguenta mais beber e continua bebendo mesmo assim. É chocante eu lembrar qualquer coisa daquela noite, mas o que lembro é que, quando voltei ao St. Regis Hotel para a festa pós-filme, vi Ali McGraw de relance e pensei: Essa é simplesmente a pessoa mais bonita que eu já vi em toda a minha vida. É chocante existir uma pessoa com aquele tipo de pele. Era mítico.

Passei a vida quase toda sem ver ‘O poderoso chefão’ inteiro. Não sei por quê. Talvez sentisse que, por estar nele, eu não podia ser um bom espectador.

Ao longo dos anos, claro, vi algumas partes aqui ou ali na TV e, depois de começar a assistir, é difícil desligar.

Mas, então, vi recentemente ‘O poderoso chefão’ numa exibição de aniversário de cinquenta anos no Dolby Theatre em Hollywood, onde uma versão restaurada foi lindamente projetada, com um som limpo e perfeito.

A experiência toda foi tão inspiradora. Não há uma cena no filme em que não estejam acontecendo duas ou três coisas ao mesmo tempo. Não há um momento de tédio, ele está constantemente contando uma história. Fiquei impressionado com tantas coisas. Por exemplo, a cena em que Don Vito sai do hospital depois de ter levado um tiro. Marlon está em sua cama com os cartões de melhoras dos filhos ao redor. E Robert Duvall e Jimmy Caan e alguns outros caras estão reunidos em volta da cama. Marlon vai perguntar: O que aconteceu com Michael, seu filho mais jovem e sua esperança de legitimidade? Eles dizem que Michael matou Sollozzo e teve que fugir para a Sicília. O ângulo em que a cena é gravada é brilhante. Há uma expressão de enorme desolação no rosto de Brando ao virar a cabeça e acenar com a mão para indicar que já ouviu o suficiente. Dick Smith fez um trabalho tão incrível com a maquiagem de Brando que dá para ver as marcas no rosto dele; dá para ver que ele passou por muita coisa e sentir a imensa montanha de sentimentos que ele precisou superar. Foi tudo tão bem pensado e tão meticuloso que esses detalhes te dão nos nervos. Aquela tomada foi estruturada de tal forma que conta tudo o que precisamos saber. O filme é cheio de momentos assim.

Mas, lá em 1972, o efeito que a estreia do filme teve em mim foi imediato.

Aconteceu na velocidade da luz. Tudo mudou. Algumas semanas depois de ser lançado, eu estava caminhando na rua e uma mulher de meia-idade veio até mim, beijou minha mão e me chamou de “Poderoso Chefão”. Em outro momento, entrei num mercado para comprar um café enquanto Charlie me esperava na calçada lá fora. E uma mulher se aproximou dele e perguntou:

— Aquele é o Al Pacino?

— É, sim — respondeu ele.

E ela insistiu:

— Sério? Ele é mesmo o Al Pacino?

Ele respondeu:

— Bom, alguém tem que ser.

O filme tinha estreado não fazia tanto tempo, então continuei a seguir minha vida cotidiana normal como se nada tivesse mudado. Um dia, estava parado numa calçada, esperando o sinal abrir, e uma bela ruiva estava parada perto de mim. Eu olhei para ela. Ela olhou para mim. Eu disse:

— E aí.

E ela respondeu:

— Oi, Michael.

E eu só pensei: Uau. Meu Deus. Não estou seguro. O anonimato, meu queridinho, a luz dos meus olhos, minha ferramenta de sobrevivência — isso acabou agora. A gente só dá valor às coisas quando as perde.”

O Globo

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