GUILHERME CARVALHO
Em não raros trechos, a Lei nº 14.133/2021 discorre sobre temas suficientemente polêmicos e, por vezes, de difícil compreensão, no mais das vezes com o intuito de promover uma justificativa antecipada para a ação, estabelecendo-se assim uma absolvição preventiva para o pior dos cenários. Tal porque a passagem da exacerbada explicação para a escusa é construída sobre um terreno escorregadio.
Por tais razões, como quem antevê a incisão de um controle externo destoante da realidade de quem licita — é dizer, aquele que exerce a função administrativa —, o legislador atrai, no corpo da lei, um malabarismo sem precedentes, cuja linguagem é anfibológica, prolongando um dos pontos que mais atormentam os agentes envolvidos no processo de contratação pública: a dúvida, que passeia, de mãos dadas, com a possível melhor solução.
Logo por isso, a Lei de Licitações e Contratos Administrativos agrega, para além das dificuldades naturais e (inerentes) à confecção de um instrumento editalício (e seus anexos), outro fator igualmente inquietante, no que diz respeito à satisfação dos que, posteriormente, podem (sem ônus) criticar a forma pela qual foi conduzido o processo licitatório.
Distante de qualquer manifesta coincidência — e ao encontro dos fundamentos carreados nesse texto —, exemplo característico (e, em certa medida, inusitado) encontra-se na opção (sem margem de escolha clara e segura) quanto ao parcelamento ou agrupamento do objeto licitado. Por mais romanesco que aparente ser, invariavelmente se tratam de ideias distintas e que, por isso, comumente são acompanhadas de disjunções impraticáveis.
Pontualmente, ao tratar da elaboração do estudo técnico preliminar, o inciso VIII do § 1º do artigo 18 menciona, como um dos elementos que nele devem estar contemplados, “justificativas para o parcelamento ou não da contratação”. Acresça-se a isso que, conforme redação do § 1º, “o estudo técnico preliminar deverá evidenciar o problema a ser resolvido e a sua melhor solução, de modo a permitir a avaliação da viabilidade técnica e econômica da contratação (…)”.
Embora nem todos os elementos a que se refere o § 1º devam, necessariamente, estar contidos no estudo técnico preliminar, o § 2º do artigo 18, que aborda os elementos mínimos, não deixa de mencionar o inciso VIII ao qual se fez referência. De tal modo, as justificativas quanto ao parcelamento ou não da contratação são indispensáveis.
Por outro lado, quando se refere às compras, o legislador, mitificando a idealização de um programa estratégico, assinala que, além da expectativa do consumo anual, deverá ser observado o atendimento ao “princípio” do parcelamento (alínea “b” do inciso V do artigo 40), “quando for tecnicamente viável e economicamente vantajoso”.
O aspecto da vantajosidade é complexo, porque não se reduz ao preço, envolvendo outros desafios, a exemplo do ciclo de vida do objeto. Logo, parcelar nem sempre se encontra adstrito à cotação, sendo viável o parcelamento quando houver aquisição em maior valor, desde que mais vantajosa, justificando, todavia, as razões e motivos que validam a vantajosidade.
Muito embora seja bastante delicado abranger o parcelamento como ferramenta objetiva, mesmo assim se esforça o legislador em cataloga-lo como “princípio” referente às compras, devendo-se levar em consideração (§ 2º do artigo 40): “I – a viabilidade da divisão do objeto em lotes; II – o aproveitamento das peculiaridades do mercado local, com vistas à economicidade, sempre que possível, desde que atendidos os parâmetros de qualidade; e III – o dever de buscar a ampliação da competição e de evitar a concentração do mercado”.
As aparentes soluções que do § 2º do artigo 40 constam são completamente desfeitas pelas normas presentes no contrastante § 3º do mesmo artigo, mencionando que o parcelamento não será adotado quando: “I – a economia de escala, a redução de custos de gestão de contratos ou a maior vantagem na contratação recomendar a compra do item pelo mesmo fornecedor; II – o objeto a ser contratado configurar sistema único e integrado e houver a possibilidade de risco ao conjunto do objeto pretendido; III – o processo de padronização ou de escolha da marca levar a fornecedor exclusivo”.
Inegável que acerca de todas as vertentes trazidas nos mencionados dispositivos legais não pairam dúvidas, sobretudo porque se tratam de conceitos primários da ciência econômica. A bem de ver que, salvo raras exceções, o parcelamento confronta o ganho obtido com a economia de escala e, por outro lado, à sua serventia potencializa-se a competividade.
Parece um tanto óbvio que, se se parcela mais o objeto licitado, maior será o número de licitantes. Todavia, também indene de dúvidas que haverá uma tendência quanto à perda de ganho em escala. Trata-se, portanto, de uma fraseologia estilisticamente decifrável.
Aderente à explicitabilidade do “princípio” do parcelamento inerente às compras, igual sorte deriva dos serviços em geral (artigo 47, II). Burlescamente, o legislador impõe ao administrador público uma inconclusa ilogicidade (perdão à tautologia), ao estabelecer, respectivamente, nos incisos II e III do § 1º do artigo 47, que o parcelamento deve levar em consideração: “o custo da Administração de vários contratos frente às vantagens da redução de custos, com a divisão do objeto em itens; III – o dever de buscar a ampliação da competição e de evitar a concentração de mercados”.
À luz da análise de tais dispositivos legais, inquestionável que o legislador pretendeu saturar o corpo normativo com um excesso de definições comuns e naturais à Economia, na ilusória pretensão de domesticar, com a força da lei, o exercente da função pública.
Guilherme Carvalho – é advogado
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