ROSANA LEITE ANTUNES DE BARROS
Esse é um tema latente, mas muito próximo das pessoas. Falar sobre a cultura do estupro, é, principalmente, refletir sobre a objetificação dos corpos das mulheres. É visível quanto à banalização e justificação da violência contra as mulheres.
O vernáculo adveio na década de 70, e começou a ser utilizado pelo movimento feminista nos Estados Unidos. Se presta a conceituar o local onde leis, valores e práticas desvalorizam as mulheres, favorecendo o aparecimento da desigualdade. O debate se acalorou no Brasil novamente em 2016, quando um crime bárbaro ocorreu no Rio de Janeiro com uma adolescente que foi estuprada coletivamente, e que teve o delito filmado e veiculado nas mídias sociais. A reflexão, entretanto, não foi tão questionada no âmbito familiar.
É precisa a ponderação sobre os mecanismos que fazem parte do cotidiano, e que alimentam a objetificação das mulheres. Os relacionamentos íntimos e de afeto são laboratórios neste sentido. As críticas são reais a mulheres quando saem de casa desacompanhadas de seus parceiros e fazem uso de bebidas com teor alcoólico. Para os homens comprometidos, a prática é absolutamente natural. O casamento heteronormativo carrega situações com marcas profundas das amarras sociais. Até o ano de 2002, ano da entrada em vigor do Código Civil atual, fazia parte de um dos deveres de coabitação do casamento a obrigatoriedade da prática sexual pela mulher com o seu marido, ainda que fosse forçadamente. Segundo a psicóloga clínica e pesquisadora da UnB, Valeska Zanello, a maioria das mulheres pesquisadas por ela afirmaram que já mantiveram relação sexual com os seus parceiros sem vontade. A mesma pesquisadora apontou que os homens pouco se importam com o protagonismo das mulheres, ou seja, se elas desejam ou não a relação sexual pouco interessa, porquanto, o importante para eles é que o sexo aconteça.
Com o passar dos tempos, as leis se modificam para adaptação à realidade. Todavia, leva tempo para que a sociedade acompanhe respectivas mudanças. Os costumes não são desnaturalizados facilmente. Um dos costumes arraigados na sociedade é o casamento e a reprodução para as mulheres. Não há qualquer cobrança neste sentido para os homens, pois se eles não se casarem e não tiverem filhos ou filhas está tudo bem e sem qualquer questionamento. Segundo as máximas, um homem solteiro “sabe viver”, enquanto uma mulher solteira se encontra “encalhada”.
Nas décadas de 80 e 90, os programas de TV abordavam os corpos das mulheres que desfilavam como “mulatas do Sargentelli”, no Cassino do Chacrinha e na banheira do Gugu. Sem contar os gringos que costumavam proferir as suas entrevistas em época carnavalesca ditando que o bonito em terras brasilis eram as mulheres a desfilarem os corpos esguios e trabalhados no sol carioca.
O documentário que conta a terrível história dos abusos cometidos por João de Deus externa que muito antes das denúncias que surgiram em forma de cascata, e que redundaram na respectiva prisão do homem, sucederam a uma única que aconteceu bem antes. A primeira mulher que narrou ao sistema de justiça ter sofrido abuso sexual por parte de João de Deus não recebeu crédito da sociedade e do Poder Público em sua fala eremita, com a consequente absolvição do conhecido “religioso”.
A violência sexual é a apropriação indevida do corpo da vítima, algo que lhe pertence. Não há intimidade carnal, pois a aproximação se desenvolveu como forma de poder, de dominação.
A cultura do estupro deve ser enxergada como problema comportamental social, em que o corpo da mulher, mais uma vez, é subjugado. A compreensão social ainda é mínima. Os disfarces se exaurem em palavras ofensivas contra as verdadeiras vítimas.
ROSANA LEITE ANTUNES DE BARROS – é defensora pública estadual e mestra em Sociologia pela UFMT.