Visita à China testa papel de Lula no jogo internacional

Presidente chega ao país em momento de tensão extrema com os EUA e sob pressão para aderir a projetos chineses condenados por Washington
Imagem colorida do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em reunião no Palácio do Planalto
Hugo Barreto/Metrópoles
O desembarque do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na China, nesta quarta-feira, é um passo capaz de moldar os rumos da diplomacia brasileira neste seu terceiro mandato e, para além disso, definir o futuro da relação do Brasil com as superpotências mundiais.

O gigante asiático, que já há algum tempo é o maior parceiro comercial brasileiro, corteja o Brasil, maior país da América Latina, para ser seu aliado estratégico também no que chama de redefinição do panorama geopolítico global – uma forma razoavelmente sutil de tratar sua ousada ofensiva para rivalizar com os Estados Unidos pelo posto de maior potência política e militar do planeta no século 21.

Depois de três anos de recolhimento na pandemia, a China tem investido pesado no plano, tanto do ponto de vista financeiro, com ampliação considerável dos gastos com ações no campo diplomático, quanto do ponto de vista retórico e prático.

A ofensiva chinesa

De uns tempos para cá, o presidente Xi Jinping, que acaba de ser reconduzido para um terceiro mandato de cinco anos e é aclamado como a mais poderosa liderança chinesa da história recente, subiu o tom de seu discurso tradicionalmente cuidadoso e comedido e se queixou das ações Washington para tentar conter as ambições da China. Ao mesmo tempo, passou a pregar com maior ênfase a necessidade de definição de uma “nova ordem” mundial.

Referindo-se claramente ao que considera ser um movimento de declínio do poderio americano na cena global, inclusive do ponto de vista econômico, Xi Jinping tem dito que o mundo passa por mudanças radicais nunca vistas antes e que é preciso refundar as relações entre os diferentes países a partir de uma lógica diferente, espalhando o desenvolvimento e a cultura da paz pelo mundo – uma opção de discurso que, por si, já dá bem o tom da campanha chinesa para ganhar corações e mentes fora de seus domínios.

Recém-nomeado por Xi Jinping para o posto de ministro das Relações Exteriores, Qin Gang, ex-embaixador chinês nos Estados Unidos, declarou que a China resolveu pisar no acelerador em sua política externa e, seguindo a linha do chefe, mas com menos contenção ainda nas palavras, foi incisivo ao dizer que a disputa com os americanos “é um jogo de vida ou morte de soma zero” no qual ninguém tem a ganhar.

Campos minados

Essa disputa entre americanos e chineses se dá em pelo menos duas frentes relevantes. Numa delas, de ordem econômica e tecnológica, as duas potências se digladiam pela dianteira nas relações comerciais com os demais países (nessa, a China tem conseguido superar os Estados Unidos com folga, vendendo ao mundo quase o dobro do que vendem os americanos) e pelo domínio das ferramentas tecnológicas que ambas oferecem (a batalha pelo 5G, em que os americanos jogam pesado contra a chinesa Huawei, é só uma das faces dessa guerra).

A outra frente, mais dramática e arriscada, envolve o protagonismo militar das duas potências nucleares. Na guerra da Ucrânia, os Estados Unidos acusam a China de armar a Rússia de Vladimir Putin, aliada notória de Pequim. A China nega e, repetidamente, espicaça os americanos por jogarem mais combustível na fogueira do conflito ao abastecer as tropas de Vladimir Zelensky, o presidente ucraniano.

Agora mesmo, Estados Unidos e China estão no centro de mais um foco de alta tensão em torno de Taiwan, que a China reivindica como parte de seu território – o que, claro, adiciona mais um elemento importante ao teste diplomático que Lula terá nesta viagem. Os Estados Unidos apoiam o governo taiwanês e se colocam como uma espécie de escudo contra uma eventual tentativa de Pequim de invadir e anexar a ilha. Os chineses veem na aliança um risco porque, na prática, Taiwan acaba por se transformar em uma base avançada para as tropas americanas bem nas suas barbas – a ilha está a apenas 150 quilômetros da costa da China.

O perigo do passo em falso

Na semana passada, em resposta a uma rápida visita da presidente de Taiwan aos Estados Unidos, o que enxergou como provocação, o governo chinês iniciou exercícios militares e promoveu um cerco à ilha. Washington, que já vinha fazendo incursões com aviões de sua Força Aérea no entorno da ilha, enviou um navio de guerra para a região.

A questão é sensível porque um passo em falso pode resultar num perigoso confronto entre China e Estados Unidos, que teoricamente ajudariam Taiwan a se defender de uma eventual invasão. Seja por essa, seja pelas outras questões envolvendo as duas potências, especialistas veem riscos reais de, no futuro, e a depender da condução, a escalada da tensão entre Estados Unidos e China degringolar para uma guerra – seria, enfim, um derradeiro e indesejado passo da disputa pela hegemonia no planeta.

Por que o Brasil interessa

É nesse delicado contexto que entra a ofensiva diplomática chinesa. Para além de tentar atrair o Brasil para sua empreitada, Pequim vem se movimentando para se aproximar de governos de outros países tradicionalmente aliados dos Estados Unidos. Na semana passada, Xi Jinping recebeu em Pequim o presidente francês Emmanuel Macron. Depois de ser afagado pelo líder chinês, Macron saiu dizendo que a Europa precisa reduzir sua dependência dos Estados Unidos, que não pode se limitar a simplesmente seguir o que querem os americanos e que deve evitar “ser apanhada” em crises que não são suas. Ponto para Xi.

Por seu gigantismo e sua importância entre os países emergentes, o Brasil é uma fronteira primordial para os ambiciosos planos chineses, o que na prática se torna um desafio complicado para Brasília pela necessidade de se equilibrar entre os interesses de Pequim e a tarefa de não desagradar aos Estados Unidos, tradicionais aliados e também importantes parceiros comerciais do país há décadas.

Nesta que será sua terceira visita à China desde que assumiu o Planalto pela primeira vez, em 2003, Lula deve assinar mais de duas dezenas de acordos comerciais e de cooperação como parte do que Brasília e Pequim têm classificado como “reaproximação estratégica”, após um período de distanciamento entre os dois países durante o governo de Jair Bolsonaro – o ex-presidente, por mais de uma vez, lançou provocações contra os chineses, o que esfriou a relação consideravelmente.

Os acordos envolvem diversas áreas – comércio, investimentos, energia e clima, por exemplo. No front comercial, o Brasil deve fechar a venda de aviões pela Embraer para os chineses.

Mais investimentos?

Há grande expectativa de que, como resultado da reaproximação, a China amplie sua carga de investimentos no país e ajude, assim, a destravar a economia. Dias atrás, Lula declarou que não deseja que os chineses comprem empresas brasileiras, mas invistam em projetos que sejam importantes para o Brasil.

A China pressiona pela adesão brasileira à chamada “Nova Rota da Seda”, ou “Cinturão e Rota”, um megaprojeto que Pequim pôs em marcha há dez anos e que está na raiz de sua busca por protagonismo no mundo.

Por meio do projeto, que conta com a franca oposição dos Estados Unidos, governo e companhias chinesas despejam investimentos, especialmente na área de infraestrutura, em países de todos os continentes. Até recentemente, especialmente em razão dos reflexos que teria na relação com os americanos, o Brasil vinha resistindo a participar, mas o assunto voltou à pauta e pontos de um eventual acordo de adesão chegaram a debatidos entre os dois governos na preparação da visita de Lula à China. O tema é tratado sob reserva entre o Palácio do Planalto e a cúpula do Itamaraty. Há, dentro do próprio governo, quem aposte que o anúncio da adesão, ou ao menos da intenção do Brasil de aderir, pode ser uma das surpresas da viagem.

Algumas outras demandas dos chineses já estão negociadas e serão incluídas entre os anúncios a serem feitos durante a visita. É o caso de um acordo que permitirá transações comerciais entre os dois países diretamente em real e yuan, sem passar pelo dólar. Trata-se de mais uma questão cara à China, que dentro de seu plano de se tornar uma potência hegemônica trabalha pela “desdolarização” do planeta – e, claro, para que sua moeda vire uma competidora natural da moeda americana.

Encontro com Dilma e teste de Covid

Depois de uma longa viagem com escalas em Lisboa e Abu Dhabi, Lula chega a Xangai na noite desta quarta-feira, manhã no Brasil. Na maior cidade da China, ele participará da posse de Dilma Rousseff como presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, também chamado de “Banco dos Brics”, o bloco de países emergentes do qual o Brasil faz parte junto com Rússia, Índia, China e África do Sul. O banco tem sede em Xangai.

Indicada pelo governo brasileira, Dilma já assumiu o posto na prática, mas quis esperar a visita de Lula à China, adiada no fim do mês passado após ser diagnosticado com pneumonia, para fazer a posse solene. Nesta quinta, o presidente deverá discursar sobre a importância de o banco, sob a liderança brasileira, investir em projetos que mudem a vida das populações dos países emergentes.

Ainda em Xangai, ele deverá se reunir com executivos de grandes companhias chineses. Nesta terça, assessores diziam haver ainda a possibilidade de uma visita a uma base da Huawei, a gigante de tecnologia chinesa que os Estados Unidos abominam e dizem ser instrumento de desenvolvimento de artifícios de espionagem a serviço de Pequim. Também estava dependendo de confirmação um jantar com dirigentes do Partido Comunista Chinês.

Por Rodrigo Rangel, do site Metrópoles

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